A plebe e a
nobreza
A esperança é que se abram os canais entre a plebe e o trono,
o clamor popular encontre ouvidos no castelo, as demandas sejam prontamente
atendidas
Frei Betto
26/06/13
Era uma vez um reino governado por um rei despótico. Sua majestade
oprimia os súditos e mandava prender, torturar, assassinar quem lhe fizesse
oposição. O reino de terror prolongou-se por 21 anos.
Os plebeus, inconformados, reagiram ao déspota. Provaram que
ele estava nu, denunciaram suas atrocidades, ocuparam os caminhos e as praças
do reino, até que o rei perdesse a coroa.
Vários ministros do rei deposto ocuparam sucessivamente o
trono, sem que as condições econômicas dos súditos conhecessem melhoras.
Decidiu-se inclusive mudar a moeda e batizar a nova com um título
nobiliárquico: real.
Tal medida, se não trouxe benefícios expressivos à plebe, ao
menos reduziu as turbulências que, com frequência, afetavam as finanças da
corte.
Ainda insatisfeita, a plebe logrou conduzir ao trono um dos
seus. Uma vez coroado, o rei plebeu tratou de combater a fome no reino,
facilitar créditos aos súditos, desonerar produtos de primeira necessidade, ao
mesmo tempo em que favorecia os negócios de duques, condes e barões, sem
atender aos apelos dos servos que labutavam nas terras de extensos feudos e
clamavam pelo direito de possuir a própria gleba.
O reino obteve, de fato, sucessivas melhoras com o rei plebeu.
Este, porém, aos poucos deixou de dar ouvidos à vassalagem comum e cercou-se de
nobres e senhores feudais, de quem escutava conselhos e beneficiava com
recursos do tesouro real. Obras suntuosas foram erguidas, devastando matas,
poluindo rios e, o mais grave, ameaçando a vida dos primitivos habitantes do
reino.
Para assegurar-se no poder, a casa real fez um pacto com todas
as estirpes de sangue azul, ainda que muitos tivessem os dedos multiplicados
sobre o tesouro real.
Do lado de fora do castelo, os plebeus sentiam-se contemplados
por melhorias de vida, viam a miséria se reduzir, tinham até acesso a créditos
para adquirirem carruagens próprias.
Porém, uma insatisfação pairava no reino. Os vassalos eram
conduzidos ao trabalho em carroças apertadas e pagavam caros reais pelo
transporte precário. As escolas quase nada ensinavam além do beabá, e os
cuidados com a saúde eram tão inacessíveis quanto as joias da coroa. Em caso de
doença, os súditos padeciam, além das dores do mal que os afetava, o descaso da
casa real e a inoperância de um SUStema que, com frequência, matava na fila o
paciente em busca de cura.
Os plebeus se queixavam. Mas a casa real não dava ouvidos,
exceto aos aplausos refletidos nas pesquisas realizadas pelos arautos do reino.
O castelo isolou-se do clamor dos súditos, sobretudo depois
que o rei abdicou em favor da rainha. Infestado de crocodilos o fosso em torno,
as pontes levadiças foram recolhidas e as audiências com os representantes da
plebe canceladas ou, quando muito, concedidas por um afável ministro que quase
nenhum poder tinha para mudar o rumo das coisas.
Em meados do ano, a corte promoveu, com grande alarde, os
jogos reais. Vieram atletas de todos os recantos do mundo. Arenas magníficas
foram construídas em tempo recorde, e o tesouro real fez a alegria e a fortuna
de muitos que orçavam um e embolsavam cem.
Foi então que o caldo entornou. A plebe, inconformada com o
alto preço dos ingressos e o aumento dos bilhetes de transporte em carroças,
ocupou caminhos e praças. Pesou ainda a indignação frente a impunidade dos
corruptos e a tentativa de calar os defensores dos direitos dos súditos contra
os abusos dos nobres.
A vassalagem queria mais: educação da qualidade à que se
oferecia aos filhos da nobreza; saúde assegurada a todos; controle do dragão
inflacionário cuja bocarra voltara a vomitar chamas ameaçadoras, capazes de
calcinar, em poucos minutos, os parcos reais de que dispunha a plebe.
Então a casa real acordou! Archotes foram acesos no castelo. A
rainha, perplexa, buscou conselhos junto ao rei que abdicara. Os preços dos
bilhetes de carroças foram logo reduzidos.
Agora, o reino, em meio à turbulência, lembra que o povo
existe e detém um poder invencível. O castelo promete abrir o diálogo com
representantes da plebe. Príncipes hostis à rainha ameaçam tomar-lhe o trono.
Paira no horizonte o perigo de algum déspota se valer do descontentamento
popular para, de novo, impor ao reino o regime de terror.
A esperança é que se abram os canais entre a plebe e o trono,
o clamor popular encontre ouvidos no castelo, as demandas sejam prontamente
atendidas.
Sobretudo, dê a casa real ouvidos à voz dos jovens reinóis que
ainda não sabem como transformar sua indignação e revolta em propostas e
projetos de uma verdadeira democracia, para que não haja o risco de retornarem
ao castelo déspotas corruptos e demagogos, lacaios dos senhores feudais e de
casas reais estrangeiras.
Frei Betto é escritor, autor de “Aldeia do silêncio”
(Rocco), entre outros livros.
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