segunda-feira, 27 de maio de 2013

A "coisificação" das pessoas e das relações humanas.

Movimento feminista tem papel importante para mobilizar críticas e ações sobre a postura do patriarcado em relação ao tráfico e prostituição de mulheres. Vulnerabilidade econômica do sexo feminino está no cerne do tráfico de gênero, analisa Nalu Faria

Ricardo Machado

A sociedade de mercado rouba sonhos e cria ilusões. “Constrói essa ideia que terá acesso a uma experiência a partir do que consome. O consumo está o tempo todo associado à felicidade, ou que a pessoa é aquilo que consome. Ter passa a ser algo muito importante. Isso como parte de uma coisificação das pessoas e das relações humanas”, considera Nalu Faria, psicóloga e coordenadora geral da Sempreviva Organização Feminista – SOF, www.sof.org.br, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Na avaliação de Nalu, a estrutura social que coloca as mulheres como principais vítimas do tráfico humano está relacionada a “vulnerabilidade econômica das mulheres, depois a identidade e subjetividade feminina, como românticas, idealistas, voltadas para acreditar em sonhos como dos príncipes encantados, hoje travestidos de ofertas milagrosas de trabalho, ou de princesas em pele de modelos.
Nalu Faria é psicóloga e especialista em Psicodrama Pedagógico pelo Grupo de Estudos e Trabalhos Psicodrámaticos, e especialista em Psicologia Institucional pela Sedes Sapientiae.  Atua nos movimentos que lutam pelos direitos das mulheres no Brasil, tais como a violência doméstica, equiparação salarial, luta contra o machismo e o direito ao aborto. É autora, entre outros artigos, de O feminimismo latino-americano e caribenho: perspectivas diante do neoliberalismo (São Paulo: Livre Mercado para o Feminismo, 2005). No site da SOF, entidade que coordena, há diversos cadernos e artigos sobre a questão da luta das mulheres para download .
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que diferenças existem entre tráfico sexual e turismo sexual?
Nalu Faria – No caso do tráfico em geral, é mais explícita a relação com escravidão e/ou da enorme quantidade de dinheiro que as mulheres têm que pagar. Por outro lado, há situações de turismo sexual relacionada ao tráfico. Em geral, o turismo sexual usa a fragilidade de mulheres muito jovens para envolvê-las nesta atividade, sem significar retirá-las da família ou de seu lugar de moradia.
IHU On-Line – Que modelos de práticas sustentam a ideia liberal de direito de que a escolha de um trabalho de prostituição é voluntária?
Nalu Faria – Uma das estratégias é tratar a prostituição como outro serviço qualquer, ou que se as mulheres quisessem poderiam trabalhar em outra coisa. Isso hoje é reforçado por estarmos em uma sociedade onde o tabu da virgindade já não é tão forte. Mas essa visão oculta que há uma instituição da prostituição, que são vários os mecanismos que levam as mulheres à prostituição, que as mulheres prostituídas geralmente possuem uma forte baixa-estima, que não conseguem se imaginar em outra situação. Outras vezes há a pressão por ganhar mais dinheiro que os pequenos salários que conseguem com outro emprego, ocasião à qual muitas vezes os parceiros amorosos as obrigam. Mas há um elemento fundamental e que tem sido considerado: a maioria das mulheres chegam à prostituição quase meninas e, quando completam 18 anos, elas já têm sua vida, sua identidade, sua subjetividade muito marcada por essa experiência.
IHU On-Line – Que subjetividades são construídas em uma sociedade marcada pelo livre mercado e pelo consumo?
Nalu Faria – Essa sociedade de mercado rouba os sonhos e cria ilusões. Constrói essa ideia que terá acesso a uma experiência a partir do que consome. O consumo está o tempo todo associado à felicidade, ou que a pessoa é aquilo que consome. Ter passa a ser algo muito importante. Isso como parte de uma coisificação das pessoas e das relações humanas.
IHU On-Line – Como a divisão internacional do trabalho está relacionada ao tráfico de pessoas? 
Nalu Faria – Um elemento fundamental para compreender essa dimensão é a indústria do entretenimento como parte de uma sociedade focada cada vez mais na competitividade, no individualismo. Portanto, da diminuição de relações pessoais baseadas em vínculos, reciprocidade. Além do mais, por uma escassez de mulheres do Norte para as atividades vinculadas a essa indústria do entretenimento, muito centrada na prostituição. Daí a necessidade de traficar mulheres. Além disso, os traficantes de mulheres chegam a dizer que é uma ótima mercadoria, pois pode ser vendida muitas vezes.
IHU On-Line – Que papel a América Latina e o Brasil, mais especificamente, cumprem na divisão internacional do trabalho?
Nalu Faria – No período de implantação da globalização neoliberal, falamos de uma nova divisão internacional do trabalho, baseada nessa migração massiva para realizarem as tarefas mais desvalorizadas no Norte. Por outro lado, pelo tipo de produção a que se dedicou a região, tanto de reprimarização da economia quanto do tipo de produção voltada para exportação. Por exemplo, as maquilas no México e América Central, as flores na Colômbia, frutas e peixe no Chile, soja no Cone Sul, etc.
IHU On-Line – Qual a estrutura nesse contexto social que implica que as mulheres sejam as principais vítimas do tráfico humano?
Nalu Faria – Primeiro, a vulnerabilidade econômica das mulheres; depois a identidade e a subjetividade femininas, como românticas, idealistas, voltadas para acreditar em sonhos como os de príncipes encantados, hoje travestidos de ofertas milagrosas de trabalho, ou de princesas em pele de modelos.
IHU On-Line – Qual o papel dos movimentos feministas no combate à exploração e ao tráfico de mulheres?
Nalu Faria – Temos que intensificar a mobilização a críticas e ações de como o patriarcado tem se organizado e essa imbricação com o mercado. Precisamos reforçar muito o debate sobre a autonomia das mulheres e a compreensão sobre os mecanismos patriarcais. Ao mesmo tempo, temos que massificar e enraizar nosso movimento. É necessário construir alianças com outros movimentos para que essa pauta não esteja restrita ao movimento de mulheres.
IHU On-Line – Qual é a responsabilidade do Estado nesse processo?
Nalu Faria – O trafico se dá por máfias. Então há que se ter uma investigação permanente. Ao mesmo tempo, há que se implementar um amplo trabalho educativo, em particular nas escolas. Por fim, realizar amplos debates públicos, assim como coibir o sexismo nos meios de comunicação, nas manifestações culturais, etc. Ou seja, atuar de forma enérgica contra a coisificação e a mercantilizaçao das mulheres.

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